Yu - "O Propósito"

sexta-feira, 7 de maio de 2010
Corria entre corpos de pessoas e de monstros domesticados para proteção, temendo o que estaria à frente. Era como uma trilha de migalhas de pão me levando ao encontro de mim mesmo. E de certo ponto de vista, era verdade.

Cheguei à uma das vielas principais da grande cidade, e ao longe pude vê-la, apontando sua espada de lâmina escura na direção do olhar de um homem cheio de jóias que, mesmo à distância, pude ver seu olhar de conformismo com o inevitável, sem ter para onde ir. Nessa distância, a única coisa que eu poderia fazer era lançar meu "bumerangue" - como chamava minha lâmina voadora - afiado em sua direção, com a certeza - e admito, a esperança - de não machucar nenhum dos dois. Isso era irônico, pois essa técnica de lançamento tínhamos aprendido juntos na nossa adolescência, quando vivemos um tempo com o povo da floresta.

Peguei o bumerangue afiado nas costas e o lancei com precisão com a minha mão direita, como nosso mestre da floresta havia nos ensinado.

Pude ver a surpresa de ambos quando as lâminas das duas armas de naturezas diferentes se degladiaram, tendo vencido pela vantagem da surpresa a voadora, lançando a escura para longe. O choque havia sido tão grande que o bumerangue perdeu seu rumo na volta, cravando em uma parede, no meio caminho entre ela e eu.

Ela não olhou para mim, nem para o senhor cheio de jóias e nem para sua espada longe do seu alcance. Ao invés disso, olhou um tempo para os céus, buscando pela lua crescente em meio às nuvens. Ela sabia que era eu, e nem precisava olhar para sua esquerda para confirmar. Hesitou em olhar pois sabia que eu era a única coisa que não queria encontrar. Porque somente eu poderia pará-la.

- Você disse que bumerangues eram inúteis - Falei, ironizando um comentário de quase uma década atrás.
- E são mesmo - Disse, ainda sem olhar para mim.

O covarde senhor cheio de jóias aproveitou a oportunidade e correu para longe. Nisso, eu já estava na metade do caminho e peguei a lâmina cravada na parede, guardando com cuidado no suporte nas minhas costas.

- Você diz isso porque não sabe jogar direito. Nunca se sabe quando eles vêem a ser úteis.

Nisso, ela desistiu de dar atenção à lua e finalmente olhou para mim.

- O que você está fazendo aqui? - Disse, me olhando agora fixamente, sendo direta como sempre foi.
- Vim buscar minha irmã - Respondi, e a vi ficar de boca aberta por um tempo. Quando a fechou, olhou para o chão e não disse nada - Eles não são seus inimigos - Falei, e a vi levantar os olhos se enchendo de raiva.
- Sim, eles são. Gente como eles apodrecem o mundo, jogando moedas na cara de quem vêem na frente - Disse Yu.
- Você sabe que há coisas no mundo que não podemos mudar agindo dessa forma. Apontar sua espada cheia de sangue na direção deles não vai mudar nada, só vai criar outra ferida no mundo - Falei.
- Você não sabe de nada - Disse Yu, e senti que estava conseguindo chegar na minha irmã, lá no fundo dessa pessoa agora na minha frente, presa em uma jaula.
- Olhe ali - Disse, e apontei na direção que o homem havia corrido minutos atrás.

Ao invés de chamar por ajuda - embora fosse potencialmente inútil em se tratando de Yu - ou se esconder em algum lugar, estava ajoelhado no chão, aos prantos e sem forças. Havia um garotinho agachado ao seu lado o abraçando. O menino então se levantou e ficou parado, em frente ao homem e olhando para Yu, com um olhar frio e determinado. Um muro gigantesco entre Yu e o senhor.

- Não machuque o meu papai! Por favor, vá embora! - Gritou o garotinho, e mesmo com seu olhar sério, pude ver suas mãos tremendo.

Yu estava congelada, e eu sabia exatamente o porquê. Isso foi como uma chave destrancando a jaula onde minha irmã estava presa, pois havia a lembrado de onde tudo começou.

- Não importa suas intenções, Yu - Disse, me aproximando - Aos olhos da inocência de uma criança, você é alguém mal querendo machucar seu papai, alguém que ela ama, não importando quem ele seja.
- Se eu o tivesse matado...
- Sim, você a tiraria aquilo que ele mais ama. Você seria igual à tudo aquilo que você mais odeia, que arrancou sua inocência um dia.

Seus punhos estavam cerrados, mas então ela os soltou e tirou os olhos do garoto. Olhou então para mim, e quem olhava agora era a minha irmã, não aquela coisa sanguinária que esteve ali minutos atrás.

- Por que isso dói tanto? - Disse, olhando para mim, mas evitando meus olhos.
- Esse vazio de não ter mais um propósito? Sim, isso dói, mas porque pra abraçá-lo você teve que abandonar quem você é.
- Todos esses anos... eu fugi de você... por que ainda quis vir atrás de mim? - Disse.
- Por que você é a minha irmãzinha, oras. Eu nunca vou desistir de você - Falei e sorri - Lembra daquela conversa que tivemos naquela caverna, quando sentamos no chão e começamos a conversar, ignorando os monstros feios e barulhentos que estavam perto? Lembra o que prometemos?
- Nunca... desistir um do outro... e não deixar que nada mude quem somos entre nós - Disse e olhou para o lado sentindo vergonha - Eu quebrei essa promessa, não foi?
- Não, senão já teria pegado sua espada ali atrás e teria me matado.

Yu olhou para a espada negra como se fosse algo estranho e repugnante e nunca a tivesse tocado. Depois olhou para suas mãos, que estavam manchadas de sangue.

- Te usaram, Yu. Usaram a sua raiva, colocando na sua frente quem queriam ver mortos.
- Como?! - Disse e olhou rapidamente pra mim, com espanto.
- Descobri em um Pub meses atrás, quando te procurava. Existe um grupo por aí, com gente por todo o canto, que aproveitou a sua raiva e conseguiram te usar de alguma forma. Esse mercante aí era um alvo deles.

Os punhos de Yu cerraram novamente, e ela começou a suar, explodindo de raiva.

- Yu - Falei e a vi sair do seu transe e olhar pra mim denovo.

Ao invés de falar, decidimos conversar com um simples olhar por um momento. Dei um sorriso - sádico, admito - e ela respondeu com outro.

- Vamos atrás deles? - Disse Yu, mantendo o sorriso sádico que eu tanto sentia falta.
- Claro - Falei - Esses não devem ter família mesmo.

Ambos rimos e ela veio até mim e me abraçou, algo que não acontecia à anos. Me recordei do universo de emoções simultâneas que ela era, pois o meu ombro era o único lugar no mundo em que ela sentia segurança para chorar.

Seguimos em direção aos portões da cidade, e Yu seguia segurando no meu braço com os olhos fechados, pois não queria ver o que tinha feito e deixado para trás. Tudo o que ela foi nesse tempo em que esteve "fora" ficou ali, junto àquela espada negra e os corpos que tiveram a infelicidade de ficar no seu caminho. E que pedimos perdão aos deuses por tudo isso.

Passamos dos portões e ela finalmente abriu os olhos, vendo a imensidão de colinas em frente e o céu estrelado nos cobrindo. Era um novo começo.

- Por que você não desistiu de mim? - Disse Yu, antes de começarmos a caminhar e iniciar um novo capítulo.
- Simples. Você me dá um propósito.