Jacques - "Respeito"

domingo, 28 de março de 2010
Antes de sair do meu apartamento, olhei para o espelho e reparei em mim mesmo. Tinha um olhar de sonolento graças à mais uma noite mal dormida - que com sorte um capuccino logo resolveria - usava um terno sem um bom caimento, uma gravata com listras finas e diagonais e um relógio prateado e caro que as pessoas olhavam e tiravam conclusões sobre mim - que à propósito não me interessa saber quais são. Reparei no meu rosto e nas linhas que o tempo tinha esculpido, bem como a minha barba rala e meu cabelo quase raspado, para dar contraste à calvice que o tempo também tinha trazido.

Sou um executivo indo para o trabalho. Um executivo que como todos os outros que conheço, teve que sacrificar alguns conceitos de adolescente para chegar onde quis.

Peguei minhas coisas em cima da cama de casal mal arrumada e saí. Andei pela rua, pensava nas pessoas que cruzavam por mim e tentava lembrar se quando estava na faculdade conseguia andar por todos sem ter a impressão de que vestia vermelho no dia que toda a cidade resolveu vestir branco, embora ninguém que passasse por mim realmente prestasse atenção nisso.

Lembrei da minha aparência cansada e sonolenta e resolvi desviar um pouco o caminho para dar um jeito nisso.

- Café Santa Martha - Li em voz baixa, parado na frente da cafeteria que ficava à duas quadras do trabalho e que frequento desde... sempre.

Entrei no lugar e me deparei com o usual. Algumas pessoas tomando um café com biscoitos olhando para o mogno do balcão e amigos ou casais sentados às mesas comendo, conversando e se preparando para ir estudar ou trabalhar. Me aproximei do balcão e procurei Janine, a garçonete.

- Bom dia, Sr. West! Vai querer o de sempre? - Disse Janine do lado oposto ao que eu a procurava, com um sorriso bonito mas profissional. A moça era bonita, com seus olhos azuis, cabelos loiros e seus vinte e tantos anos
- Bom dia, Janine. E sim, quero o de sempre... só que é pra levar, estou com pressa hoje.
- Certo. Tudo bem com o Sr? Parece cansado... - Perguntou, enquanto preparava o capuccino.
- Tudo bem sim, e com você? - Respondi com a mentira mais contada na história da humanidade, logo depois dando à ela a vez de dizer a mesma coisa, mentira ou não.
- Tudo bem também... - Repondeu, para o bem das minhas expectativas - Aqui está seu capuccino, tenha um bom dia! - Disse, me entregando o copo. Ela então propositalmente tocou na minha mão esquerda e me deu um sorriso, dessa vez não profissional. Me despedi provavelmente com uma cara de dúvida e logo peguei o capuccino e fui com certa pressa para o trabalho.

Cheguei na frente do edifício e fiquei ali parado um tempo. Lembro quando eu tinha conseguido emprego aqui, logo depois da faculdade. O prédio parecia ter milhares de andares, como um verdadeiro colosso no meio da cidade. Mas, com o tempo, foi ficando cada vez menor. Ele não encolhera, acredito que o que mudou fui eu. Hoje, acredito que a realidade faz bem.

Fui escalando o longo lance de escadas, e via várias pessoas subindo e descendo. Eram estagiários, entregadores, executivos e mais todos os tipos de empregados, fazendo música sem saber com os seus passos e conversas para todos os lados.

- Ei... tem um trocado para um esfomeado? - Disse uma voz à minha esquerda, quebrando a música com uma pergunta e uma rima.

Virei para ver um homem sentado ao chão. Tinha cabelos castanhos e enormes e uma barba grande. Vestia trapos e estava sujo ao chão, usando um par de chinelos diferentes. Era um mendigo, como muitos nessa metrópole.

- Não, não tenho - Respondi, mentindo e seguindo algumas regras que tomei pra mim ao longo do tempo.
- ha ha ha, então quer sentar aqui comigo e ver se tem mais sorte que eu? - Perguntou, rindo em meio ao sarcasmo.
- Vou indo, melhor sorte com outro - Falei, me despedindo. Me virei e voltei a subir as escadas, tentando encontrar a música dos passos denovo.
- Aposto que você vive sozinho. E se alguém vivia com você, foi embora - Disse o mendigo.

Nessa hora eu parei porque meu corpo congelou.

- Quem é você? Como me conhece?? - Perguntei, depois de descer a meia dúzia de degraus que tinha subido.
- Agora quer saber quem sou eu, é? ha ha ha. Eu sou ninguém. Só quero uns trocados para comer - Disse, se esquivando da última pergunta.
- Eu quero saber como diabos você me conhece - Perguntei novamente, alterado.
- Eu não te conheço. Você que é fácil de ler como um livro.

Abri a boca pra dizer algo mas não saiu nada. Lembrei de mais cedo, quando estava me olhando no espelho. Se eu não me conhecesse e somente analisasse a mim mesmo, chegaria à conclusões bem próximas de quem eu realmente sou.

- West! O que está fazendo aqui fora? Vamos subir, temos uma reunião daqui a pouco - Disse Edgar, escalando os degraus sem entender porque eu perdia tempo com um mendigo.
- Eu.... deixe pra lá, suba na frente que eu já vou - Respondi ao recém contratado funcionário que trabalhava na parte administrativa. Um peão novo e petulante na maneira como se dirigia à mim.
- Ok, West... lhe espero lá em cima!

Olhei o jovem rapaz subindo as escadas que eu deveria ter subido à algum tempo. Me voltei ao mendigo novamente.

- ha ha ha... engraçado, não é? Ele trabalha pra você e não te respeita... E faz de conta que te respeita perto dos outros. Duvido que West seja o seu nome... - Disse o mendigo.
- Chamar alguém pelo sobrenome é uma forma de respeito... e é mais fácil de identificar do que pelo nome - Respondi, repensando depois o porquê não tinha ido embora ainda.
- Certo... então não seria mais fácil te chamar por um número? Suba lá e diga que você se chama Onze! Duvido que haja outro, o que ainda pode acontecer com algum outro West - Retrucou, com sarcasmo novamente.
- Eu... ah cale-se. Quem é você pra me dizer alguma coisa? Olhe onde você está... Nem nome lhe interessa.
- Pode me chamar de qualquer coisa, Onze - Disse, me irritando ainda mais.
- Do jeito que é e se veste, se acha quem? Jesus, por acaso? Ah já sei... faz isso pra ganhar mais esmolas?
- ha ha ha... então agora eu sou Jesus! Prazer, Onze... Meu nome é Jesus! ha ha ha. E acho que não está dando certo com as esmolas, já que você não me deu nem um centavo.
- Chega, vou trabalhar - Finalizei, me virando para sair dali e continuar a escalada.
- Até mais Onze... Ah! Ei, olhe aqui! Pense rápido! - Me virei e o vi jogar uma moeda em minha direção e logo a peguei no reflexo com a mão esquerda, pois na direita estava meu capuccino agora provavelmente morno.

Pensei em retrucar alguma coisa mas o ignorei e voltei às escadas. Decidi que não adiantava mais argumentar com ele, que não conhecia a minha história e falava como se conhecesse cada coisa a meu respeito - Minha ex-mulher... como ele pôde adivinhar isso? - Não conseguia tirar isso da cabeça.

Terminei de subir as escadas e entrei no prédio, rezando para não encontrar ninguém conhecido para tentar não piorar esse dia bizarro que estava seguindo. Estava passando pelo balcão em direção aos elevadores e avistei Marina, a recepcionista.

- Bom dia, Sr. West - Disse a moça seguindo o protocolo.
- Bom d...

Parei de andar e pensei um pouco. Olhei para a moeda que o mendigo... "Jesus"... havia me dado. Me virei à moça, que me olhou com um olhar de confusão.

- Eu... Olhe, meu nome é Jacques. Bom dia.

Yu - "Crianças"

segunda-feira, 15 de março de 2010
Chegamos de madrugada no reino de Talluh, e a primeira coisa que pensamos em fazer foi passar pelo Pub da cidade. Todavia, nossos motivos por lá não eram beber as especialidades da região e sim responder a um chamado do Rei, provavelmente interessado no que podíamos fazer na véspera do que todos chamavam de "A grande guerra".

- Não devíamos estar aqui - Disse.
- Isso não vai nos impedir de ver o Rei amanhã... relaxa - Respondeu Yu.

Entramos no bar e nos deparamos com todo o tipo de gente. É o tipo de lugar que qualquer um é aceito desde que não faça besteira, então estávamos em casa. Bebemos e conversamos sobre a viagem e nossas outras aventuras passadas.

Depois de uma hora ou duas, estávamos para sair, quando ouvimos alguns guardas reais bebendo e conversando.

- ... Ele tem causado medo e pânico nas pessoas - Disse um dos guardas.
- Já não basta a guerra estar se aproximando e ainda temos que nos preocupar com isso... Se continuar assim e não fizermos nada, seremos banidos da guarda real - Falou o outro guarda, preocupado.
- Já são trinta mortes... Trinta!

Yu se levantou para sair e a parei, segurando-a pelo braço.

- Não devíamos nos preocupar com isso? - Falei, apontando com a cabeça para os guardas.
- Não é da nossa conta, vamos. - Disse, sem um pingo de preocupação.

Fui a seguindo e pensando na boa noite de sono que seguiria.

- Sim, todas crianças - Disse o outro guarda.

Nessa hora Yu parou, e confesso que tomei cuidado com o que falaria para ela. Por isso, não falei nada.

- É... dizem que ele se esconde na floresta de Lunna... Mas lá é território dos Elven, então não podemos fazer nada. - Complementou o outro guarda.

Ja tinha ouvido falar nessa floresta. É um lugar exótico e cheio de lendas, mas não sou do tipo que acredita nelas. Provavelmente são boatos para afastar as pessoas de um lugar estrangeiro e perigoso.

Yu se virou e olhou pra mim.

- Mudei de idéia - Disse.
- Isso não é da nossa conta - Respondi, com um tom de sarcasmo que me arrependi depois, porque lembrei o motivo de crianças mexerem com ela.

Seus olhos se encheram de raiva, tanto que pensei que me atacaria ali mesmo. Mas fechou os olhos e se acalmou. Deve ter se lembrado que eu não tenho consciência e não tenho culpa disso.

- Agora é da nossa conta - Disse Yu, agora mais calma.
- Isso sim vai nos atrasar de ver o Rei - Falei.
- O Rei que espere, isso é mais importante.

Comecei a pensar na noite de sono que agora não teria.

Iosef - "Espada e Escudo"

domingo, 7 de março de 2010
1... 2... 3... 4... 5... 6... 7... 8... 9... 10... 11...

- Acorde.

12 badaladas.

Abri os olhos e estava envolto por escuridão, árvores e sons de criaturas noturnas. Não reconhecia esse lugar, embora o achasse familiar. Estava completamente desarmado, somente vestindo uma armadura antiga... A primeira que tive, logo quando comecei a minha vida adulta e criei um nome e uma fama às custas da realeza.

Havia algo de errado, pois eu não via essas vestimentas à 20 anos. - Elas foram completamente destruídas - Lembrei. Senti algo na minha mão. Estava segurando algo. Olhei e me deparei com um broche. Um broche que conhecia muito bem.

- Ilana!! - Gritei.

Comecei a correr, enquanto meu coração batia cada vez mais rápido e eu ouvia os sons das criaturas das sombras vindo em meu encontro. Tudo o que conseguia pensar era em Ilana, minha esposa. Ela me trouxe tudo de bom que conheci na vida... havia me transformado. Agora estava esperando um bebê, que viria ao mundo na próximas semanas. Nosso filho. Meu legado. Meu perdão.

Segurava cada vez mais forte o broche, tentando entender tudo isso e rezando para ser um pesadelo.

- Eu tenho que acordar!

Sentia os sons das criaturas mais próximas.

- Eu tenho que sair daqui!

Pensava na minha esposa e meu filho em perigo.

- Acorda! Acorda!

Foi quando a lua saiu de seu esconderijo em meio às nuvens no céu. O seu brilho iluminou a floresta inteira. Ouvi os sons das criaturas mudando seu rumo, agora se afastando de minha direção como se estivessem fugindo, assim como eu estava me afastando delas momentos atrás. Vi as folhas das árvores começarem a emitir uma luz, como reação ao brilho do luar. A floresta inteira começou a emanar um aroma... doce.

Deixei o broche cair de minha mão, pois não conseguia mover músculo algum. Eu agora sabia onde estava. As criaturas estavam de fato fugindo de algo. Algo que pode ameaçar qualquer homem, monstro, anjo ou demônio. Deixei de pensar que preferia que isso fosse um pesadelo. Era um pesadelo.

O brilho da lua de repente sumiu, assim como as luzes e odores da floresta. Tudo começou a sumir. Senti minhas forças indo embora, como se meu corpo desaparecesse.

~

- Abra seus olhos - Disse uma voz que parecia vir de todos os lados.

Estava em um lugar onde não se via céu nem chão. Tudo à minha volta era escuridão, alternando entre tons vermelhos e azuis.

Na minha frente havia uma plataforma redonda e grande com inscrituras que alternavam entre um brilho forte e fraco. No meio dela estava Ilana, dormindo calmamente na nossa cama, exatamente como estava quando fomos dormir essa noite.

À frente da plataforma havia um altar gigante com várias formas e símbolos estranhos gravados. Havia um trono no centro, onde sentava alguém. Era eu, vestindo a armadura negra que usei no auge de minha vida nas sombras. Eu... ou "Ele"... estava usando uma máscara branca, somente deixando à mostra os longos cabelos que eu possuía.

- Seja bem vindo à minha casa, Iosef - Disse "Ele".
- Por que você se parece comigo? - Perguntei.
- Posso responder à essa pergunta outra hora? - Indagou, com um tom de sarcasmo.

Então "Ele" mostrou algo que segurava em sua mão. Era o broche de Ilana.

- Você vai... levar ela? - Perguntei, temendo a resposta.
- Claro que não. Ela não pertence à esse lugar. - Respondeu.
- Então você vai...
- Você sabe por que está aqui agora, Iosef? - Interrompeu.
- Temo que sim.
- E por que, então?
- Julgamento.

"Ele" é uma força maior e infinita. Não se define como Bem ou Mal, nem sequer tem um nome. Nem forma. Por isso fiquei confuso com sua aparência semelhante à minha. Aqueles que acreditavam nele o chamavam de "Juiz".

De repente, tudo ficou claro.

- Meu filho!!! Você quer o meu filho!!!
- Sim, Iosef.

Senti toda a raiva que aguentava sentir e fui correr em sua direção para atacá-lo, sem pensar. Ele sumiu do altar e reapareceu à minha frente, junto à um golpe com a garra negra que usava. Que eu um dia usei. Caí longe dali, me sentindo fraco mas sem dor alguma.

- Por que!?!? Por que o meu filho!? - Perguntei, enquanto tentava me levantar.

Ele então sumiu e reapareceu ao lado da cama de Ilana.

- Perdão e esquecimento são duas coisas distintas, Iosef. Você achou que perdoando o seu passado você o apagaria. As memórias de um homem podem acabar juntamente à sua vida, mas todos os seus atos e consequências ficam gravados no mundo, no tempo e na história.
- O que você vai fazer com ele?!? - Perguntei, sentindo uma imensa raiva.
- Sua alma e seu coração serão selados. Não terá espada nem escudo. Sentirá a solidão de não fazer parte do bem nem do mal. Será uma força entre os homens assim como eu sou no universo. Neutra.

Perdi qualquer força que tivesse em mim, pois meus maiores medos tinham tomado forma. Meu filho seria o marco do perdão pelo meu passado... Mas acabou por se tornar a consequência.

Em minha vida, sentimentos ruins me fizeram caminhar nas sombras e, então, sentimentos bons me transformaram. O que será uma vida sem sentimentos? Meu filho não merecia isso.

- Mas agora você pode viver com tranquilidade, Iosef. Você está livre de suas correntes.

Ouvir isso não me fez sentir nada tranquilo. Eu só sentia angústia e medo, misturados à raiva.

- Seu filho nascerá na próxima lua cheia, à meia-noite. O marco diário entre passado e futuro - Disse.

Então, "Ele" desapareceu junto ao altar e a plataforma. Tudo o que restou foi a cama de Ilana. Fiquei parado um pouco do lado dela, olhando-a dormir e pensando em nosso filho. Ele carregaria toda a minha culpa em si e nem saberia disso. Nada faz sentido.

Deitei na cama ao lado de minha esposa, abraçando-a e acariciando sua grande barriga onde estava nosso filho. Então vi algo diferente. Uma pequena borboleta azul se aproximou, descansando na beira da cama. Me senti mais leve e vi tudo ao meu redor tomar forma quando eu acordei. Estávamos de volta no nosso quarto. Em nossa casa.

Comecei a pensar racionalmente em tudo, agora que estava acordado. Tinha que tentar fazer alguma coisa, até a próxima lua cheia. Nem que custe o meu perdão.

Por ele. Meu filho. Meu legado.

Por Louis.