Sophia - "Personagens"

sábado, 27 de fevereiro de 2010
Cheguei em casa pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo. Não era um dia que eu me orgulharei de ter tido.

Pensei em como eu conseguia fazer as coisas errado. E não importa a intenção se os fins são desastrosos, certo? No final, não são somente chefes no trabalho que só querem resultados: Família, amigos e relacionamentos não são tão diferentes assim. E como no trabalho, podem te demitir. Foi o que fizeram, com o tempo.

Eu sempre tentei ser um herói e ajudar os outros, mas ninguém parecia se importar quando eu conseguia, mas nunca esqueciam quando eu errava. Chega de tentar.

Já que estava fazendo tudo errado, resolvi estragar mais um pouco as coisas. Peguei no bolso da minha camisa um telefone que um ex-amigo tinha me passado. Lembrei da nossa conversa, uma semana atrás...

- Ela é demais, meu! E não cobrou tão caro assim, hahaha! - Falou, enquanto todo o resto do pessoal caiu em gargalhadas na mesa do bar.
- Você não sente vergonha não? - Respondi, quebrando o clima de risos na mesa.
- Você se acha o cara, não? Vamos falar sobre você então. - Disse, exaltado. Me bombardeou com histórias, fatos da minha vida e meus erros, inspirado pelas várias cervejas que havia tomado.

Realmente, eu não era o cara.

~

Liguei.

- Alô? Hm... Você é a Cherry? - Perguntei, rapidamente antes que eu ficasse mudo ao telefone.
- Ela não está... Você pelo jeito está interessado nos serviços de "acompanhante", certo?
- Sim. - Respondi. Para ela e para mim mesmo.
- Olha... tem uma garota nova aqui, o que você acha?
- Pode ser... - Respondi, pensando se deveria perguntar alguma coisa, como atributos físicos ou pelo menos o nome. Eu não sabia mesmo o que estava fazendo. Dei o endereço e então desliguei.

Esperei por mais de uma hora, pensando em como o fundo do poço era um lugar diferente. Bebi algo para facilitar as coisas também.

Escutei alguém batendo na porta. Peguei meu script imaginário de falas que montei e fui em sua direção.

Confesso que eu esperava uma garota de roupas coloridas e cabelo forçadamente tingido, segurando na parede e olhando para o olho mágico pelo lado de fora, enquanto mascava chiclete de boca aberta... O que seria nojento quando falasse "Ei cara, apê legal o seu!".

Errei. Olhei pelo olho mágico e vi uma garota linda de cabelo liso e castanho, sem muita maquiagem e um pouco menor que eu. Devia ter uns 20 anos e não segurava na parede nem mascava chiclete. Somente olhava para o chão, pensando bem longe.

Abri a porta.

- Ei... oi! - Disse, assustada.
- Olá... Vamos entrar? - Perguntei, seguindo o meu script

Ela não se mexeu quando eu perguntei se queria entrar. Somente o fez quando eu abri bem a porta e saí da frente.

Ofereci algo para beber e ela não aceitou. Ficou parada de pé evitando se mexer, então sentou-se no sofá quando eu disse que podia.

- Qual o seu nome? - Perguntei.
- Eu... sou a Sophia.

Tive a certeza que ela ia falar um "nome profissional" ali pra mim, mas exitou e disse o seu nome de verdade. Ficou um clima estranho no ar, então ela seguiu o seu próprio script.

- Desculpa... mas a gente pode terminar aqui logo? - Perguntou.

Negócios são negócios, certo? Fizemos então o que ambos estávamos ali pra fazer. Parecíamos robôs, seguindo o que estava programado. Mas eu podia sentir seu coração batendo rápido, então fiquei mais culpado pois ela era de fato um ser humano. Terminamos, e senti um certo ar de conformismo em ambos.

- Eu já volto, minha carteira está lá na sala. - Falei, enquanto levantava. Mas na verdade eu queria sair dali o quanto antes porque sentia vergonha do que tinha feito.

Quando voltei, esperava que ela estivesse já arrumada pra sair, embora estivesse se passado somente uns dois minutos.

Foi quando eu joguei meu script fora.

Ela estava chorando, na cama ainda. Chorava muito mesmo, segurando o rosto com as mãos. Fiquei sem saber o que fazer, então fiz o que eu senti que devia. Sentei do seu lado.

- Desculpa... mesmo! Eu prometo que eu já vou embora! - Disse, chorando cada vez mais.
- Não, está tudo bem... - Respondi, sem saber direito no que dizer. Como ela iria confiar nas palavras de alguém como eu?

Aquilo foi familiar. Me senti decepcionado, pois me senti impotente.

- Vai ficar tudo bem. - Foi tudo o que consegui falar, enquanto eu acariciava o seu rosto e seus cabelos.
- Me... desculpa... - Disse, quase sem forças, tomadas segundos atrás pelas lágrimas.

Adormeceu.

Fui para o sofá da sala, pensando em Sophia, no dia seguinte e nos tempos que eu ainda sonhava em ser um herói nesse mundo. Para isso, eu não deveria ser nenhum personagem nem seguir algum script, deveria ser eu mesmo.

Tinha mais uma chance de fazer as coisas certo.

Yu - "O Mundo..."

domingo, 21 de fevereiro de 2010
Despertei do que pareceu ter sido uma vida inteira de sono. Ainda estava cansado da última noite, pois após tempos turbulentos longe dali, estávamos de volta. E como tem sido desde minhas primeiras lembranças da infância, não sonhei enquanto dormia. Ao contrário dela. Fui até o quarto onde ela havia dormido e não estava na sua cama...

O cheiro de pão fresco tomava conta da casa da Senhora Anna, que como sempre que estávamos na cidade, nos recebia em sua casa pelo tempo que precisasse. Ela é eternamente grata à nós desde anos atrás, quando conseguimos salvar seu filho, ainda criança, de um ataque de ladrões à carroagem do pai. Não conseguimos salvar o pai a tempo.

- Bom dia, Senhora Anna - Falei, ao descer as escadas e a avistar andando em direção à cozinha.
- Bom dia, querido! E por favor, me chame de Anna... assim me faz parecer velha! - Disse a senhora já com certa idade, baixa estatura, longos cabelos brancos e uma disposição que me causava certa inveja nessa preguiça matinal. Eu nunca mais consegui falar com ela sem me sentir inquieto ou olhar para o chão, desde o episódio da carroagem. De certa forma, sentia vergonha não pelo que fizemos, mas pelo que não conseguimos fazer.
- Umm.. Desculpe... Me diga, onde ela está? - Perguntei.
- Onde você acha? Levantou antes do Sol nascer no horizonte e está lá...

Saí da casa e fui subindo as escadarias do grande muro que cercava e protegia a cidade, enquanto pensava nela e nos seus motivos.

Lá estava. O Sol parecia se comunicar com ela enquanto nascia no Horizonte. Seu brilho laranja e cada vez mais intenso iluminava como uma luz divina os seus longos cabelos vermelhos e sua espada prateada na cintura, em contraste com sua pele clara como a neve nas montanhas geladas.

Usava uma armadura escura... Não tão pesada e forte como as de ferro que os guerreiros usam nas missões nem tão leve e fraca como a de um aprendiz. Ela sempre precisava se sentir protegida.

Me aproximei e lhe abracei, sem falar nada. Certos gestos dispensam palavras.

- No que está pensando, Yu? - Perguntei.
- No mundo... - Respondeu, enquanto colocava sua mão no meu braço.

Comecei a falar sobre coisas diversas, tentando a fazer sair do seu mundo interior e voltar pra o nosso. Parecia que minhas palavras ricocheteavam... Estava hipnotizada ali, e eu sabia o porquê. Ela então olhou para trás e se virou em direção à cidade...

- As coisas não deveriam estar dessa maneira... Os inocentes irão pagar pelo que não escolheram... - Disse Yu.

Não falei nada, pois não havia o que dizer. Ela então apontou em direção à fonte que ficava no meio da cidade, onde começavam as quatro grandes vielas que a dividia em quadrantes, formando um grande cruz.

Lá estava uma garota, provavelmente de 10 anos ou até menos, segurando uma espada leve mas ainda ofensiva. Ela dava golpes desengonçados no ar, mas possuia um olhar determinado. E de certa forma, frio.

Era para ela que Yu olhava.

- É assim que será o mundo daqui pra frente? - Disse Yu, sem tirar os olhos da garotinha.
- Não devemos julgá-los pelos erros da nossa geração - Repondi.
- Devemos julgá-los sim, mas pelas suas escolhas. E devemos protegê-los - Disse, enquanto segurava com mais força o cabo da sua espada na cintura.

De repente, ouvimos um barulho vindo da direção do Sol, agora com quase todo o seu brilho no céu. Viramos, para ver um cavalo se aproximando rapidamente pela estrada que terminava nos portões da cidade. Ninguém estava montado, mas trazia algo consigo. Havia algo de sinistro em volta dele.

Ficamos em silêncio, e olhamos nos olhos um do outro...

Certos gestos de fato dispensam palavras.