Jacques - "Vales e Montanhas"

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Já faz alguns dias desde que tive meu encontro bizarro com aquele mendigo. Logo após aquilo eu fiquei desesperado, admito. Me sentia como se estivesse andando nu por aí, com todos vendo coisas sobre mim que eu não achava que eram aparentes.

Mas como no luto, cheguei no estágio da aceitação. Agora me sinto até bem sabendo que aquilo aconteceu. De uns tempos pra cá de fato me esforcei pra esconder várias coisas sobre mim e como estava sofrendo; e agora, apesar de me frustrar sabendo que foi inútil, me sinto mais aliviado sabendo que não adianta continuar o fazendo. Acho que ficarei bem se começar a prestar mais atenção no meu redor.

~

Reparo que me perdi em devaneios e esqueci completamente o que estava fazendo e parece que acabei de acordar, sentado à minha mesa no trabalho. Só vejo um monte de papéis na minha frente, uma caneta na minha mão e umas planilhas com números sem contexto na tela do computador. Acho que preciso pensar um pouco. Abro minha gaveta e pego duas folhas, uma quadrada em branco e outra com um diagrama que havia guardado. Um diagrama de origami. Essa é uma das únicas coisas que coloca meus pensamentos em ordem quando estou aéreo assim – bom, exceto as drogas que usava esporadicamente na adolescência e funcionavam, mas à longo prazo não pareciam uma boa ideia.

Saio da minha mesa e vou para a cozinha com os papéis na minha mão, passando pelos cubículos do pessoal do escritório. Sou alto, e consigo ver no mínimo o cabelo de todos na enorme sala dividida em corredores em meio aos cubículos. Cada um deles se sente no seu espaço ali, mas daqui vejo o quanto isso é uma mentira bem bolada para os fazer produzirem mais. Isso está um caos hoje, pois é sexta-feira perto do fim do mês, então todos ficam levantando, gritando, atendendo telefones, trocando papéis e andando de um lado pro outro. Sei como é porque trabalhava ali até uns dois anos atrás. Nada bom pra uma mente perdida como a minha. Sorte que consegui destaque mesmo assim.

- Mas eles não te respeitam – Ecoa a fala daquele mendigo na minha cabeça. Argh, preciso de um café também.

Chego na cozinha e vejo poucas pessoas, por sorte ninguém que eu conheça. Não sou anti-social, mas não gosto de forçar simpatia quando quero um tempo. Peço um café longo na máquina – que considero uma das maiores invenções humanas, mais que pirâmides bizarras – e começo a olhar o diagrama de um beija flor. Não parece difícil até certo ponto. Começo a seguir o meu caminho entre vales e montanhas e chego até um passo que não consigo entender o que o autor quis dizer, nem discernir que tipo de dobra deve ser feita.

Acordo do meu transe e reparo que há alguém do meu lado olhando o papel dobrado na minha mão e o diagrama na outra. É Marcus, um dos estagiários que acabam fazendo o serviço pesado de gente preguiçosa. Mas gosto dele, é um garoto legal. Sempre evito pedir coisas que eu mesmo não possa fazer com um pouco mais de boa vontade.

- Acho que o senhor tem que dobrar pra dentro, seu West – disse o rapaz.

Abro a boca pra dizer algo e reparo que ele acertou no palpite.

- Será? Vamos ver... – Começo a dobrar e vejo que ele está mesmo certo. Continuo os dois passos finais – Agora acho que assim e assim – murmuro. – Pronto!
- Ficou legal, seu West. Acho que vou começar a fazer isso também, é difícil? – diz o rapaz impressionado.
- Não é difícil... E me chama de Jacques, por favor – digo, me lembrando do que ouvi naquele dia.
- Certo, seu Jacques... Bom, vim buscar um café antes de ir pra rua denovo. – Diz o rapaz e fico até com pena. Sei que na verdade boa parte do que ele vai fazer é pagar contas pessoais de executivos. Mas como disse ele é um bom empregado e não reclama desde que receba certo no fim do mês.
- Ei Marcus, posso te pedir um favor? Vai passar pela Constantine no caminho?
- Umm... Só vou para aqueles lados mais tarde, e não muito perto... quer que eu leve algo lá? – diz o rapaz prestativo mas vejo que não ficou muito animado com o pedido.
- Sim.. por favor... passe na minha mesa antes de ir então, tem um malote que preciso que leve...
- Certo... – diz Marcus desviando o olhar pro lado. Reparo que ele não gostou do pedido. E com razão, não agora, mas por todas as outras vezes que os executivos o fazem andar, no meio da chuva densa ou do sol quente, pra pagar contas ou levar presentinhos para mulheres de outras empresas. Já sei como posso dar uma força pro garoto.
- Ei, eu já vi como você olha pra Marina lá na recepção. – digo e os olhos do rapaz arregalam – Não se preocupe guri, não vou falar pra ninguém. Dê esse origami pra ela quando passar por lá.

O rapaz não sabe o que dizer. Deve estar morrendo de vergonha. Mas enfim se recompõe.

- Ah, será que ela vai gostar? Queria chamar ela pra sair um dia desses, mas acho que ela só é simpática comigo por obrigação.
- Vai sim, ela viu um na minha mesa uma vez e ficou maravilhada. Sabe, ela é simpática com todo mundo, faz parte do trabalho dela. Mas não tem como você ver como ela te olha quando te vê e você não repara. Isso já não faz parte do trabalho dela.
- Uau... vamos ver então, seu Jaques! Obrigado pelo toque! – Diz o rapaz que sai da sala com o origami que o dei, quase pulando de felicidade. Espero que ele nunca mude, gosto desse seu jeito.

~

Mais tarde, na minha mesa, após voltar à Terra e conseguir trabalhar um pouco, Marcus vem buscar o malote.

- Deixa lá na recepção da Constantine e diz que é pro Raul... Nem precisa subir - digo e entrego o malote.
- Certo, beleza! – diz o garoto animado – Só tenho que passar no administrativo pedir um dinheiro pra viagem.
- Ué... eles não te dão pela manhã? – digo intrigado, pois já fui estagiário.
- Dão sim... é que de manhã depois de uma viagem um mendigo me pediu dinheiro aqui na escadaria... achei ele legal e dei. Não conta pra ninguém, seu Jacques...

Demoro uns 10 segundos pra conseguir dizer algo. Achava que aquele homem não estava mais lá. Será ele mesmo?

- Como era esse mendigo? – pergunto. Ele se intriga, mas responde:
- Ah, veste trapos e é cabeludo... só reparei nisso. E tem uma risada engraçada e alta.

Fico em silêncio - talvez em choque - e o rapaz acaba por sair da sala. Espero que não tenha achado que foi algo com ele.

É inevitável que eu encontre aquele homem novamente.

E agora sim, desisto de trabalhar por hoje.